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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

Centenário de Vergílio Ferreira

João Gonçalves 27 Jan 16

 

 

Na próxima quinta-feira, dia 28, completam-se cem anos sobre o nascimento de Vergílio Ferreira. Não sou dado a comemorações literárias, ou outras, mas no panorama frouxo da chamada literatura portuguesa contemporânea não é possível ignorar a altura do autor de "Manhã submersa". Vergílio Ferreira desceu de Melo, em Gouveia, para a cidade e, contrariamente ao venerado Torga, tornou-se num dos escritores mais cosmopolitas do século passado. Passou rapidamente pelo neo-realismo - "Vagão J", por exemplo - do qual se separou com a firmeza e a substância intelectuais que o caracterizavam. Polemizou - uma coisa de que a literatice descendente e superficial abdicou até por confundir isso com mais ou menos colunas analfabetas e amiguistas nos jornais - contra o domínio cultural "neo-realeiro" nos anos de chumbo das oposições e da "situação" salazarista. Polemizou a seguir com a "modernidade" modista sem nunca perder o pé no tempo até porque tinha uma formação filosófica iconoclasta, muito superior a muitos de papel passado como "ensaístas" e "filósofos". A sua obra é variada e não julgo que se possa afirmar que, nele, o "romance" seja superior ao ensaio ou ao diarismo e vice-versa. À semelhança de Jorge de Sena, é porventura dos mais completos e complexos intelectuais portugueses. Ninguém, com dois dedos de testa, pode ficar indiferente a uma página de Vergílio Ferreira independentemente do modo escolhido por ele para a escrever. Pelo contrário, é indiferente ler qualquer página de muita produção dita literária actual por ser tão mediocremente indistinta. Aliás, ele costumava dizer que não era tão dado a enredos quanto ao "ambiente" que poderia entrever-se da forma "romance" ou outra. O que se percebe lendo "Aparição", "Nítido nulo", "Para sempre", "Carta ao futuro" (onde se encontra a mais forte redescrição literária da cidade de Évora), as apresentações de Malraux, Sartre e Foucault e os primeiros três ou quatro volumes da "Conta-corrente", a melhor súmula ironista da "obra completa". Como dizia a mulher Regina, tinha uma deliciosa língua de prata que lhe fazia correr o risco de morrer envenenado se a mordesse. Não foi assim. Morreu a escrever e persiste autor maior de uma língua não deturpada pelo criminoso "acordês" de 1990. "Que mais há na tua vida que o teu canto, a angústia do teu grito contra os céus desabitados?".

 

Jornal de Notícias, 25.1.2016

Pacheco no jardim do bem e do mal

João Gonçalves 13 Dez 15

 

Foi preciso esperar dez anos para Pacheco Pereira dar à estampa o quatro volume da biografia política de Álvaro Cunhal. Que não se espere outros dez pelo último. Este é inequivocamente o "bom" Pacheco. O da história, o arguto, o divulgador, o coleccionador, o amante dos livros e dos papéis, o intelectualmente inteiro, minucioso e livre. O que estimula. Depois há o "mau". Aquele que soberba e contraditoriamente não aceita a liberdade de expressão dos outros e que não suporta que não sigam as suas "orientações". O actual primeiro-ministro bebeu ardentemente deste "mal" anos a fio na Quadratura do Círculo. Em plena campanha para as legislativas Pacheco não se coibiu de sugerir que o tinha "formado". E não escondeu a seguir a sua satisfação (ia a dizer alegria mas Pacheco não abunda em sentido de humor) pela maneira como Costa contornou a derrota. Ter sido um dos mais intensos e consistentes "costistas" valeu-lhe agora um prémio na Fundação de Serralves. Tem mais do que biografia evidente para o efeito. Não é isso que está em causa. Podia era ter esperado pelo arrefecimento do cadáver da coligação. Por isso a melhor homenagem que o PSD pode prestar ao vício e à virtude, ao contrário do que alguns militantes mais aguerridos possam pensar, é tê-lo como militante. Mostra que é tão ou mais livre do que ele.

Cunhal: "honra e vergonha"

João Gonçalves 13 Jun 15

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Dez anos após a sua morte, Álvaro Cunhal é recordado numa entrevista ao Diário de Notícias pelo seu melhor biógrafo político, José Pacheco Pereira. Estão publicados três de quatro volumes desse tão monumental quanto preciso trabalho que culminará, naquele por vir, com a saída de cena de Salazar em 1968. Tem talvez razão o autor quando afirma "perceber" Cunhal, a função específica do historiador. Isto é, não se perceberá Cunhal ou as suas tensões e circunstâncias políticas sem ler, ou reler, com gosto igualmente literário, os livros de Pacheco Pereira. Porquê? Socorro-me da apenas da entrevista. «Era uma personalidade psicologicamente muito complexa. Muitas vezes isso só se revela mais tarde e retrospectivamente percebemos que a persona era a mesma. Cunhal foi transformado numa personalidade a preto e branco, um monge laico do comunismo, que obviamente não era. Uma espécie de teórico absoluto, ortodoxo, inteiramente ligado aos soviéticos, e em vários momentos decisivos ele não foi isso. Mesmo quando muda de posição, como no caso da Checoslováquia, muda por razões geopolíticas: está convencido de que mais importante do que o sucesso da experiência checa, que ele vê com bons olhos, é que a União Soviética não perca o hegemonia no movimento comunista internacional (...). Cunhal nunca abandonou a ideia de que o derrube do regime se faria também através de uma componente de luta armada, que é a tese dominante do Rumo à Vitória, onde fala no levantamento nacional armado. A fórmula é ambígua mas implica uma forma de violência revolucionária (...). Uma biografia de Cunhal é complexa, porque tem de tratar não só evoluções mas também pensamentos (...) O PCP tem uma história política ideológica muito marcada pelas ideias dele. Uma vez chamei-lhe o idealista pragmático, ou o revolucionário pragmático. Manteve sempre uma postura revolucionária, no sentido leninista, nunca abandonou a necessidade da violência, da luta armada, nunca defendeu que a transição em Portugal pudesse ser pacífica (...) Ele deixou ficar inscrito no programa do PCP uma coisa que lhe garantiu a sobrevivência: mais vale ser o que era do que tentar mudar (...). De todas as pessoas públicas que conheço, Cunhal é das mais vaidosas que é possível imaginar. É uma vaidade muito especial, não é dizer “eu sou o melhor”, mas traduz-se na representação que ele faz de si próprio na ficção. São Bernardo fala na vaidade do monge que é perfeito, que escolhe sempre os trabalhos mais difíceis, comporta-se sempre de forma exemplar. E as personagens em que Cunhal se representa na ficção são perfeitas, mesmo nas suas imperfeições (...). É um homem que se descreve a si próprio como a encarnação viva de um ideal que lhe apaga a personalidade, que lhe tira a pulsão pelos defeitos, que lhe apaga os pecados, sem os negar. Cunhal tem um grande corpus de textos – como aliás têm outras pessoas no PC – sobre os defeitos. O entendimento da clandestinidade do PC não é idealizado. Sabe que estão a lidar com homens com defeitos em situações de grande risco. Essa combinação do defeito com o risco e as fragilidades na experiência clandestina Cunhal percebe-a muito bem. Daí que nunca apele à ortodoxia nem à ideologia nem a uma espécie de situação abstracta. Ele usa aliás os valores do mundo mediterrânico: a honra e a vergonha (...). As ambiguidades são interessantes, quem trabalha sobre esta matéria tem sempre de perceber o que não é dito (...). Cunhal é uma das duas ou três figuras que explicam o século XX português, como o Salazar. Há outras pessoas muito importantes para se perceber o século XX. O Afonso Costa, que explica o republicanismo. O Marcello Caetano, o Mário Soares, várias figuras. O Cunhal é sem dúvida uma delas. Muitas coisas que marcam o século XX, ainda hoje vivas, têm a ver com o pensamento dele. Por exemplo, a ideia de que Portugal não é um país pobre (...) Eu percebia-o bem de mais e ele percebia-me bem de mais.»

Cunhal

O rosto e as máscaras

João Gonçalves 21 Mai 15

Passam seis meses sobre a detenção de José Sócrates. Primeiro para interrogatório e a seguir a título de medida de coacção máxima. Ainda há quatro anos este homem era o primeiro-ministro de Portugal. Dirigira entretanto um dos maiores partidos políticos portugueses. Foi deputado, secretário de Estado e ministro. O livro de Fernando Esteves é, até agora, a sua única biografia política. Não me refiro, claro, às primeiras páginas em torno do processo que o mantém detido. Sócrates não está acusado nem "arquivado". Persiste num limbo carcerário que, segundo um companheiro de infortúnio, o mata em vida (o livro termina com esta frase enigmática: "está morto em vida".) Todavia o livro não revela uma personagem susceptível, seja em que circunstância for, de poder "estar morto em vida". O autor optou por sujeitar a ordem cronológica dos "factos" à relevância dos temas. Tratou-se de uma opção inteligente que permite traçar algumas constantes na vida política do biografado desde cedo. E juntá-las. Ambição com intimidação, auto-estima com megalomania, determinação com teimosia, inteligência com esperteza, complexos com excessos, controlo com insegurança, ambiguidade com firmeza, manipulação com imagem. O que sobretudo me impressionou foi a clara ausência de densidade democrática no homem político que a persona Sócrates forjou. António Barreto escreveu uma vez que não sabia se Sócrates era fascista. Prefiro, depois de ter lido o livro, a perplexidade de não ter a certeza se Sócrates é um democrata respeitador das liberdades públicas. Espero que um dia, livre e "vivo em vida" como o concebo, me possa esclarecer.

Um cesarismo indesejável

João Gonçalves 12 Mai 15

 

Comecei a ler este livro de António M. Feijó. Lamentavelmente, e para meu espanto, vem impresso em "acordês", uma coisa a que dedicarei a crónica do Portugal em Transe no Jornal de Notícias de amanhã, dia em que o aleijão ortográfico passa a "obrigatório". Será porque a editora é a Imprensa Nacional-Casa da Moeda e deve dar o "exemplo", nem que seja o mau? Relembro a posição de Feijó sobre o dito cujo e, dela, esta significativa passagem. «Não há qualquer acordo ortográfico entre países de língua inglesa, nem poderá havê-lo. A língua inglesa nem mesmo é língua oficial dos Estados Unidos, sendo as tentativas de legislá-la como tal sistematicamente recusadas pelo Congresso. A inexistência de uma língua oficial implica que, em qualquer comunidade em que haja uma significativa comunidade de falantes de um idioma que não o inglês, os documentos oficiais devam escrever-se nesse idioma, bem como em inglês, enquanto idioma mais falado no país. O critério é aqui pragmático e político, o do necessário reconhecimento democrático de uma realidade local. Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. Numa altura em que, em Portugal, se procura definir com parcimónia quais as funções do Estado, a sua extensão a um domínio como a língua é uma forma de cesarismo indesejável.»

Haver quem os admira

João Gonçalves 2 Mai 15

 

Isto já é um bocado de Observador a mais para meu gosto. Todavia, este texto notável de Miguel Tamen sobre um livro presumivelmente também notável de António M. Feijó sobre Fernando Pessoa entrelaçado de Pascoaes ou o oposto - e que envolve, o artigo, instantes notáveis de crítica literária o que prova que esta sobretudo não precisa de berloques melancólicos ou desinformados para se apelidar "crítica literária" - deve ser lido por quem ainda consegue encontrar aquele "prazer no texto" que não tem de ser necessariamente o "do texto" que Barthes esmiuçou. Imagino que o livro de Feijó esteja à altura da recensão de Tamen, e vice-versa, conhecendo o trabalho de ambos. Pessoa, que não era uma "pessoa" propriamente dita tal como em geral as conhecemos, é ele e aquilo a que por vezes se chama a sua "fortuna crítica", mesmo a menos afortunada. Tamen vai de João Gaspar Simões a Cesariny, passando por um (e um só, não se assustem) Agostinho da Silva e pelo Revisitado, «o único livro de Eduardo Lourenço.» Saem rasurados da lista Jacinto Prado Coelho ou as colectâneas de artigos em forma de livro o que exclui Casais Monteiro e Sena, por exemplo. Mas, resumindo, o que me interessa é que este texto e, segundo Tamen, «este livro é assim, para além de um livro sobre escritores, um livro sobre o facto, cada vez mais raro, de haver quem diz em voz alta que os admira.»

Pavanas para um poeta morto

João Gonçalves 30 Mar 15

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Não tenho presente a designação da nova revista do hebdomadário Expresso. Talvez seja "E" grande, não sei, e não me apetece ir confirmar. As duas derradeiras edições tornaram-na mais conspícua por capas substantivae formalmente antagónicas. Há duas semanas dedicaram-na a Cristina Ferreira, uma moça da televisão que "abafou" a concorrência em proporções verdadeiramente bíblicas. Julgo, até, que terá uma "marca" com o seu nome e uma revista, outra, cuja primeira página partilhou com o prolixo prof. Marcelo na dupla qualidade de "colega" (de televisão) e de proto-candidato presidencial (dessa televisão, das bases do PSD e do dr. Portas com quem se reconciliou). No número de sábado a fotografia de capa era de Alfredo Cunha e o fotografado era Herberto Helder. Lá dentro havia mais fotografias e, sobretudo, cinco textos a pretexto da morte do autor de Os passos em volta. Digo a pretexto e não exactamente sobre Herberto Helder porque, de uma maneira geral, os articulistas escreveram mais sobre as suas "experiências", reais ou imaginárias, com o poeta do que propriamente dele ou daquilo que ele representou na chamada literatura portuguesa contemporânea. Não tem mal. É comum falarmos de nós quando falamos de outros  e vice-versa. Mesmo a título mais informativo como sucede com o texto de Ana Cristina Leonardo. Ou mais "prosódico" como nos "confrades" de Helder, Tolentino de Mendonça e Pedro Mexia. Clara Ferreira Alves faz naturalmente de Madame de Mertreuil como costuma fazer com tudo o que escreve e diz: "je suis mon ouvrage". Também não tem mal. Fui reler o que o Joaquim Manuel Magalhães tinha dito, em momentos precisos, do que, naquele momento em que o afirmou, era alguma da obra de Herberto. E são ainda hoje esses textos que olham para aquele edifício entretanto sujeito a tantas implosões com menos complacência ou condescendência entre tanta admiração fundamentada. Até nos registos mais aparentemente jubilatórios J. M. Magalhães "liberta" a poesia de Helder da tentação de proeminência que algum lastro epigonal mal amanhado quis à força reter daquele fulgurante uso das palavras. Entretanto em Helder sucederam-se as contingências editoriais que culminaram, nas derradeiras, em "aparições" de rapidíssimos desaparecimentos e em uma "obra completa" ou "toda" que aparentemente não mais cessará de o ser. Talvez por isso mesmo seja difícil, quando não impossível, "fixar" sem ser com a imprecisão musical de uma pavana o que persiste, ou não, em Helder e na sua arte. Que é dela que se trata, não se duvida. Como se trata dela, há-de duvidar-se para sempre.

 

Uns procuram ramas de ouro.
Outros, filões de púrpura unindo
sono a sono. Há quem estenda os dedos para tocar
as queimaduras no escuro. Há quem seja
terrestre.

A difícil arte de pensar

João Gonçalves 19 Mar 15

 

Estamos pouco ou nada habituados a que "actores" políticos se dêem ao trabalho de pensar. Movidos pelo "curto-termismo" e pela insaciável procura comunicacional, a generalidade dos agentes políticos tende a desprezar, na acção, o papel indispensável de um pensamento que não seja inteiramente débil. É certo que encontramos nos protagonistas mais recentes e proeminentes, em títulos de livros que ninguém leu, coisas aliciantes como "mudar", "compromissos para o futuro", "caminhos em aberto" ou "roteiros". Mas, na realidade, Portugal nunca esteve tão pasmado como agora passados mais de quatro décadas sobre o acto fundador do regime. As 80 reflexões que Manuel Maria Carrilho apresenta na sua mais recente obra, precisamente intitulada "Pensar o que lá vem, para acabar com o Portugal pasmado" (Planeta, 2015), furtam-se à leviandade do imediato que corrói a qualidade do espaço público do debate democrático. Poucos cultores da política nacional têm sabido alcançar a trabalhosa simbiose entre "o sentido da história que explica" e "o pressentimento do futuro que mobiliza", isto é, a capacidade de "olhar para o Mundo através do prisma da incerteza, sondando-o mais através das consequências do que se sabe, do que de palpites sobre probabilidades que não se conhecem de todo". Carrilho fá-lo a partir de um lastro identificável, o do socialismo democrático ou da social-democracia, todavia com uma notável liberdade de espírito própria daqueles que têm mais a dar à política do que dela alguma vez esperaram receber. Não é por acaso que refere Kant: as coisas têm ou um preço ou uma dignidade. Como professor universitário, como ministro, como deputado, como representante de Portugal na UNESCO Carrilho nunca transigiu, quer babujando "palavras mágicas", quer gerindo "silêncios calculistas". Assumiu sempre, pasme-se, as suas responsabilidades. O seu livro, nestes tempos desbussolados e pasmados, alivia das simplificações em que se afadigam os precários militantes dos ciclos políticos. Que não entendem o que aí vem.

 

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