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portugal dos pequeninos

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O respeitador cosmopolita do português

João Gonçalves 27 Abr 14

 

A erudição não abunda entre nós. Por isso a morte de um polémico erudito como Vasco Graça Moura é mais uma queda. Nem sequer era preciso estar sempre com o político que ele também apreciava ser. Mas o poeta, o prosador, o cronista, o ensaísta - "Camões e a divina proporção" aí está, por exemplo, para o erguer nessa difícil arte do ensaísmo literário -, o tradutor, o editor e, sobretudo, o respeitador cosmopolita do português (e não da babugem cretina parida pelo abstruso e ilegal acordo ortográfico através do qual muitos parolos o vão "homenagear" em letra de forma) são, naquele sentido em que hoje pungentemente nos falta enquanto memória, sociedade e cultura, exemplares. Ainda há pouco mais de um mês escreveu no DN que a língua estava a ser destruída. E acrescentava: «Não conheço hoje muitos políticos que sejam a favor disso. Se falarmos de outros utentes qualificados, também não, salvas as excepções menores do costume e as propensões para a cedência do costume. E estamos a falar de Portugal. Se passarmos a Angola temos uma noção de como se pode e deve defender a língua de um país, das suas tradições, da sua cultura, das suas relações humanas e sociopolíticas, enfim, da sua identidade. Quanto ao Brasil, faz o que entende e não se sente vinculado por uma série de baboseiras que, está mais do que demonstrado, são perfeitamente inconstitucionais no nosso país. Realmente, como na salada dos pais do imortal Basílio, o acordo foi mexido por uns cegos e temperado por uns loucos.» Ficamos com a sua derradeira inquietação que fazemos nossa: «Em que ortografia vão os nossos grandes autores ser servidos nas escolas? Serão implacavelmente desfigurados pela aplicação dessa coisa sem nome?»

 

 

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

1 comentário

De isabel de deus a 27.04.2014 às 23:13

Condenado como o foi , pelo cancro, essa velha nova epidemia, sem dúvida merecia
satisfeitos os últimos desejos. Que de novo fosse pura e bela a sua língua, a que tanto amou, seria sem dúvida um deles. Será que alguém lhe pode conceder na morte, o que ignorando a sua lúcida sapiência lhe negou em vida? Que assim fosse, e que descanse em paz.

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