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portugal dos pequeninos

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Um raro social-democrata

João Gonçalves 3 Mar 15

 Em tempo de escassez de sociais-democratas (seja no PS, no PSD ou fora de ambos), Jorge Miranda persiste como uma raríssima voz representante daquilo que a social-democracia tentou ser em Portugal. Fundou o PPD, saiu do PSD, ajudou a ASDI, apoiou Eanes. Teve um papel determinante na Assembleia Constituinte como um leal e racional defensor da Constituição de 1976. Nestes quarenta anos de regime, interveio sobretudo pela palavra escrita e pelo magistério. Ensinou gerações de juristas. Sobretudo ensinou-os a ler, a gostar de ler. Dizia que até na paragem do autocarro se devia ler. Por junto deu-me aulas em quatro semestres do meu irrelevante curso de direito e em três cadeiras distintas. Daí para diante encontramo-nos muitas vezes: na rua, no Sáo Carlos, até num serviço de finanças. E houve, tem havido sempre, uns bons minutos para uma conversa amável e inteligente. Razões de sobra para regressar ao seu convívio sobre nova letra de forma.

Conferência Medeiros Ferreira

João Gonçalves 18 Fev 15

 Decorre entre amanhã e sexta-feira, na Fundação Gulbenkian (Auditório2), a conferência José Medeiros Ferreira, O cidadão, o político, o historiador, com entrada livre. Participarei num dos painéis e, do depoimento que escrevi para o livro da foto editado na circunstância deste debate, deixo aqui um excerto a propósito dos dias que correm. «Ponderava, como poucos, as funções de soberania no Estado moderno democrático e falava disso com a vivacidade lúcida e informada de quem conhecia bem a história contemporânea portuguesa. Há apenas quatro anos, informado da minha colaboração com o programa do XIX Governo Constitucional no qual recorri a um título seu, brincou a sério: «eu vi logo que não era a malta do «estado mínimo!» Em Medeiros Ferreira surpreendi constantemente aquela inquietação intuitiva que separa os políticos de métier dos homens que encaram a política como uma cibernética, entre a reflexão e a acção, que calibra, em ambiente de contingência e de forma contínua, a ininterrupta conversa democrática mesmo quando “lançada” de um “exílio interior”.»

Manuel de Lucena

João Gonçalves 8 Fev 15

 

Morreu ontem Manuel de Lucena. Os mais "novos" provavelmente não o conhecem porque, apesar de ele ter sido até ao fim de "andar por aí" de sacola ao ombro e genuinamente informal, escrevia agora menos nos media. Mas escreveu muito e bem. "Cruzei-me" cedo com ele por causa do livro da foto e por causa dos "Reformadores", em 1979, que ele apoiou no âmbito da AD de então (o "então" é esdrúxulo porque não houve mais nenhuma). Em Genebra, no exílio, juntamente com o Medeiros Ferreira, António Barreto, Eurico de Figueiredo e outros fundou a revista Polémica. Por cá passou pelo Semanário e pela Tarde, por exemplo, com o Vítor Cunha Rego. Era fundamentalmente um académico sem pretensões, livre e discreto, daqueles que tentam perceber e que nos ajudam a tentar perceber. Um tipo, nas suas palavras, que pensava "umas coisas que não eram mal pensadas".

Com este mal todo

João Gonçalves 29 Dez 14

O livrinho da foto lê-se num instante. As entrevistas que o autor concedeu quando passou por cá revelaram uma personalidade com um interesse inegável. Isto numa altura em que é cada vez mais difícil descobrir um autor que não se desmanche em trivialidades. Escreveu-o aos dezanove anos. É autobiográfico e revela uma França que só costuma aparecer nos boletins de voto, mais propriamente na cruzinha em cima de Marine Le Pen. Nada que não soubéssemos já de outra gente que precedeu Édouard Louis: apesar de 1789, a sociedade francesa é do mais reaccionário que o mundo tem conhecido. Nada do muito mau que lhes aconteceu, para não irmos mais longe, no século XX foi fruto do acaso: Vichy, o colaboracionismo, a separação visceral (violenta, nas palavras violentas de Louis) entre "direita" e "esquerda" e, sobremaneira, entre "burgueses" e os outros. A aldeia, os comportamentos, os cheiros (os cheiros valem muito neste livro), os corpos (dos animais de duas e de quatro patas), a normalidade patológica de um quotidiano totalitário (o termo também é dele) entram por uma França "profunda" adentro, entre os dois milénios, sem o menor pudor. Muito menos o do adolescente que ele era, então a florescer literalmente entre a merda. Vê-se que leu. Duras, sobretudo ou talvez. Vê-se que tudo lhe subiu à cabeça aparentemente prodigiosa depois de ter sido sentido no corpo. Até no humor negro, e não negro, de certas passagens. Estreia-se bem com este mal todo resumido em duzentas páginas.

O'Neill

João Gonçalves 20 Dez 14

 

Se fosse vivo, Alexandre O'Neill teria completado ontem noventa anos. O trabalho das palavras na nossa língua, livre de abortos ortográficos ilegais, era a "missão" de O 'Neill - o poeta, o cronista, o publicitário. Alguma da grande poesia do século XX pertence-lhe tal como lhe "pertenceremos" sempre enquanto "dor mansa e vegetal" de que apenas a morte porventura o "libertou".

«Não gostava nada que me caíssem em cima, nem que dissessem nada sobre mim. Epitáfio… eu até tinha um:

Aqui jaz Alexandre O’Neill

Um Homem que dormiu

muito pouco

Bem merecia isto»

Animais desmemoriados

João Gonçalves 12 Dez 14

 

«Acompanhei com interesse os últimos acrescentos à lista do património imaterial da humanidade, e muito especialmente o caso do pão caseiro na Arménia. Temos a ideia razoável de que tudo aquilo que é humano neste sentido elevado deve ser muito antigo, e até imemorial. Àquilo que fazemos com regularidade chamamos costumes ou hábitos; e as histórias que contamos acerca dos nossos hábitos são histórias em que costumamos colocar-nos na posição de seus herdeiros. Há o hábito de afastar o mais possível do nosso tempo a origem desses costumes. Um historiador demonstrou que, pelo menos até 1917, a única coisa que se comia na Arménia era salada russa. O conceito de património imaterial é vulnerável a estes percalços. De facto, depende de evidências; mas as evidências têm uma tendência desafortunada para serem materiais. Mal começamos a reconstruir as evidências materiais do património imaterial, a origem de tudo aquilo que achamos que se perde na noite dos tempos aproxima-se assustadoramente da semana passada. A alegação de hábitos, costumes e tradições não ganha assim muito em ser escrutinada, a não ser quando o motivo e a empresa são de humilhação e castigo. Um conhecido poeta arménio observou que o pão caseiro é o nada que é tudo. Agir como se o nada fosse alguma coisa equivale a querer pedir certificados de autenticidade para as ideias que costumamos ter, e a pedir a terceiros que garantam que sempre as tivemos. É a importância que para nós têm certas ideias que nos leva a ir bater à porta das sociedades e instituições especializadas na certificação de fenómenos imateriais. Esta diligência inaugura porém uma série de infelicidades. A certificação das nossas ideias preferidas requer evidências; abre a porta à possibilidade de aparecer alguém que as irá enxovalhar, e explicar que aquilo que nos parece importante é trivial, e que aquilo que nos parece antigo é recente. Ao contrário do que possa parecer não se trata de um problema ou de um defeito da historiografia ou da cultura; trata-se de uma característica da espécie a que alguém chamou animais racionais e dependentes. Tais animais, pessoas exactamente como nós, inclinam-se a pensar que as suas ideias e actividades tiveram todas origem em tempos muito remotos; esta inclinação, porém, quase nunca resiste a um escrutínio hostil. Uma vida inteira de Verões passados na Nazaré são afinal oito anos; um costume secular, pouco mais de cinquenta e quatro. É preciso distinguir as nossas ideias importantes das nossas fantasias de certificação, as coisas imateriais das coisas imemoriais. As nossas infelicidades com aquilo que é imaterial indicam que o que é material no fundo não nos interessa muito; e as nossas infelicidades com a noção de imemorial indicam que somos animais desmemoriados.»

 

Miguel Tamen

Céus desabitados

João Gonçalves 9 Dez 14

 

O "meio" tem estado entretido com a promissora "novela" Espírito Santo. Qualquer imbecil simples já percebeu o "ponto" de todos os intervenientes, desde os familiares aos parlamentares (consoante a seita que representa) passando pelo governo e pelo magnífico dr. Costa do Banco de Portugal. Estou-me francamente nas tintas para os ditos todos. Entretanto, por um post do Pedro Piedade Marques no Facebook, fiquei a saber que a Livraria Lácio, no Campo Grande à esquina do prédio onde mora Mário Soares desde sempre, fechou. «Primeiro viam-se as montras cobertas pelas persianas e um papelinho à porta informava que o fecho temporário se devia a "motivo de doença". Depois, quando lá passei há dias a caminho da Torre do Tombo, já não havia papelinho: lá dentro, encaixotavam-se os livros. E assim, uma livraria enorme, com cinco ou seis montras, desapareceu. E aos que argumentam que o local é "ermo" para livrarias recordo que não o era há uns 30 anos (ainda me lembro da excelente livraria que havia ali perto no Caleidoscópio do Jardim do Campo Grande), e que a Cidade Universitária continua ali perto, bem como a Biblioteca Nacional e o maior arquivo português. Se uma localização destas já não beneficia uma livraria...» O torpor estupidificante que tomou conta da minha vida nos últimos tempos - como se tivesse inexplicavelmente sido expulso dela - afastou-me de pequenas coisas que apreciava. Entre elas o passar pela Lácio, vasculhar livros a cheirar ao bom pó dos livros, encontrar os que nunca se hão-de encontrar nos centros comerciais em que se tornaram, indistintas, quase todas as livrarias mesmo as mais "respeitáveis". E falar um pouco com o Marcos André. Agora sei que não voltaremos a falar a não ser através dos autores que ambos apreciávamos. "A conversa passou por cá, pelo Brasil, por talhos que outrora foram editoras, por Vergílio Ferreira, pelos cinquenta anos da Presença, por Sena, por Fernando Guedes, por Manuel Brito, enquanto lá fora, no Campo Grande, passavam bandos de corvos agarrados aos copos de plástico com cerveja. Imagino que nem sequer dez dos milhares de "alunos" das universidades das redondezas terão entrado na Lácio ao longo de um ano lectivo. Aquilo não é sítio para putas, femininas ou masculinas, formadas ou deformadas. É um espaço de dignidade e de humanidade, de amor aos livros como poucos já existem, onde as vendas mal dão para pagar a luz". Mais de quatro anos depois disto escrito, a luz pelos vistos extinguiu-se. E, a cada minuto que passa, as putas, femininas ou masculinas, formadas ou deformadas, avançam. Em 1970, Marcos André editou um livrinho de poemas no Brasil. Ofereceu-me um exemplar que dedicou "a um leitor que gostou de "coisas" que nele vão escritas". Nas palavras que antecedem os poemas, André pergunta por que os decidiu editar. Seria «por ter sido surpreendido, ao iniciar a minha carreira de livreiro, com a chamada elite cultural, emaranhada e desgastando-se inutilmente em intriguinhas provincianas?" Seria porque foi acometido pelo "vómito mental que sentia por ver e constatar tanta estreiteza e mesquinhez?" Um poema, como escreveu Eduardo Lourenço num bom momento de inspiração, não possui exterior a que reenvie. Mas as questões deixadas em aberto andam por aí como andavam na altura em que André, por São Paulo, as formulou. De agora em diante é também delas que me vou recordar se e quando voltar àquela esquina do Campo Grande. A Lácio passou a fazer parte daqueles "céus desabitados" da frase de Aparição, de Vergílio Ferreira, que serve de epígrafe ao livrinho de Marcos André, Entrevero. «Que mais há na tua vida que o teu canto, a angústia do teu grito contra os céus desabitados?»

Duzentos anos de Sade

João Gonçalves 2 Dez 14

 

Há 200 anos nascia* Donatien Alphonse François, mais conhecido por Marquês de Sade. Passou a maior parte davida atrás de grades vítima da inveja do costume, dos inimigos pessoais e dos ódios políticos. "Morou" na Bastilha, onde, aliás, estava encarcerado no célebre Verão de 1789. Dias antes do mais famoso "prec" da história da humanidade invadir ao estabelecimento prisional, como agora se diz, Sade atirou da janela uns panfletos escritos à mão onde descrevia as degradantes condições a que estava sujeito. Depois dirigiu-se à turba recorrendo a uma espécie de megafone artesanal. Após ter sido solto, escolheram-no "presidente" da sua "junta de freguesia", dando início a uma campanha anti-religiosa que muito ajudou a radicalizar a Revolução. Todavia, opôs-se ao chamado "Terror". Quando os seus sogros, responsáveis por muitos dos anos que passou na prisão, foram condenados à morte como contra-revolucionários, Sade conseguiu impedir a execução. Este ingénuo "acto de clemência" custou-lhe, uma vez mais, a liberdade. A "jacobinagem" mais primitiva (não há outra) prendeu-o - era, afinal, um perigoso "moderado" - e condenou-o à pena máxima. Esperou um ano pela guilhotina. No entanto a liberdade chegou com o fim do dito "Terror" mas os tempos seguintes foram passados na mais trerrível miséria. Quando apareceu Napoleão, Sade não resistiu a escrever uma sátira sobre o pequeno, de estatura, imperador. Foi condenado a passar o resto da  vida num asilo para doentes mentais. Tem sido "estudado" como merece. Imprescindíveis serão porventura algumas páginas de Blanchot, Foucault ou Barthes. Até o nosso Eduardo Lourenço tem um admirável ensaio sobre a criatura. D. A. F. de Sade será sempre um imenso escritor. "Toda a felicidade dos homens reside na imaginação", dizia. Deve ser por isso que existem tantos cretinos infelizes. Como escreveu Barthes - o que "actualiza" ainda mais o Marquês -, «em Sade nunca há nada que lembre a mediocridade do discurso da imprensa.» Como poderia haver?

*morria, evidentemente, como em boa hora assinalou um leitor mais atento

Quando é que se lembram de Mécia?

João Gonçalves 19 Nov 14

Por andar quase sempre de volta de Jorge de Sena - ou de voltar a ele por causa de outras coisas de que se anda à volta - ocorreu-me que este país, tão "generoso" na atribuição de veneras ao primeiro paspalhão "empreendedor" ou ao último "gestor" panorâmico e internacionalizado, nunca distinguiu Mécia de Sena pelo trabalho único feito em prol da publicação e divulgação da obra de seu Marido. Sem Mécia, sem a sua persistência e o seu amor (sim, é de amor que se trata), o prematuro e injusto desaparecimento de Jorge de Sena antes dos sessenta anos de idade poderia ter impedido gerações e gerações de tomar contacto com um dos poucos grandes vultos da chamada cultura portuguesa do século XX. Sena é daqueles portugueses cosmopolitas que nunca nos envergonham. E que, pelo contrário, nos chama permanentemente a atenção para a possibilidade de, no caso dele pelo vencimento lúcido e luminoso das suas palavras, sendo desgraçadamente "daqui" não ser ao mesmo tempo. Está, pois, mais do que na hora de o Estado - mesmo no estado de rebaixamento a que chegou - homenagear Mécia de Sena que fez durante décadas e décadas mais pela literacia nacional do que os exércitos de académicos, proto-académicos, poetastros e escrevinhadores de centros editoriais-comerciais alguma vez poderão fazer, até por se tratar de um impedimento intelectual e moral básico dessas torpes condições.

 

Uma polémica famosa

João Gonçalves 15 Nov 14

Uma antologia de uma polémica em que intervieram criaturas tão distintas como Fernando Pessoa, Marcello Caetano, Raul Leal, Pedro Theotonio Pereira ou Júlio Dantas pelo "lado certo". Depois da publicação das Canções de Botto, no centro disto tudo, Mario Saa, em sua defesa, afirmou-o um «livro para ver como reagem as bestas.» Afinal, a "função" de qualquer coisa digna desse nome, livro.

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