Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

 

A política, sobretudo a política enquanto história, precisa de símbolos e de gestos (até mesmo de alguns aparentemente gratuitos) para sobreviver com dignidade. Dias como o de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas devia ser um desses dias. O actual regime já vai no seu trigésimo nono 10 de Junho. Com o decurso do tempo, Camões foi ficando para trás - nos primeiro anos, com Eanes, não era assim -, as Comunidades dispersas pelo mundo mais entregues à retórica de ocasião e a si próprias como, aliás, sempre estiveram fossem elas produto do exílio político ou económico (este agora de novo a aumentar em virtude das circunstâncias), pelo que resta Portugal. Ou o que resta de Portugal para ser mais preciso. Fazia sentido ter a presidente do Brasil presente nas cerimónias oficiais de um 10 de Junho que também é dela? Fazia mas porventura a gravitas acrítica do protocolo não o permitiu embora Dilma não olvidasse, ao contrário de nós, a importância da simbologia política independentemente dos "negócios". Antes do Portugal oficial, oficioso e envergonhado de Elvas, recebeu Seguro e Mário Soares. Camões dirige-se, pois, embaraçado aos nossos contemporâneos (sempre os mesmos) pela voz de Jorge de Sena, dois símbolos maiores dessa vida tão profunda quanto tragicamente "pelo mundo em pedaços repartida".

 

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Dois Senhores

João Gonçalves 29 Mai 13

Infelizmente não cheguei a conhecer Jorge de Sena. Ele vivia e ensinava nos Estados Unidos - a "academia" pós-25 de Abril fez-lhe o mesmo que a do Estado Novo - e, no 10 de Junho de 1977, na Guarda, só o acompanhei pela televisão. De resto, muito cedo habituei-me a lê-lo e a considerá-lo porventura o intelectual mais completo do século XX português. Quanto a Gaspar Simões, entrevistei-o na sua casa da Calçada das Necessidades, para o Semanário, a pretexto de Pessoa. E ainda nos cruzámos em subidas e descidas da Rua Garrett até à sua morte. Foi dele, em exclusivo, e anos a fio, o mandarinato crítico-literário de jornal. Era um senhor, não sei se sabem o que é que isso quer dizer no meio do lixo geral. Eram ambos, cada um à sua maneira, uns Senhores.

O talento da injustiça

João Gonçalves 12 Abr 13

 

A coisa começou menos mal, hoje, com a aquisição do livrinho da correspondência de Sena e Ramos Rosa, orientado pela incansável D. Mécia e coordenado pelo competente seniano Fazenda Lourenço. E por uma conversa, a café, com uma das mais pessoas de quem mais gosto no mundo. Logo na primeira carta, Jorge de Sena em parêntesis: «somos sempre tão híper-sensíveis todos, sobretudo quando sabemos que não temos inteira razão.» Até para se ser injusto é preciso talento, coisa que não faltava ao autor de Andanças do Demónio. Por falar em demónio, verifico que o país, segundo os telejornais da hora de almoço, está habitual e tranquilo. Só em bola, umas três ou quatro peças seguidas da implosão de um trambolho no Porto e de um "directo" de São Bento sobre o decurso do tempo. Brandos costumes, como Vasco Pulido Valente intitula a sua crónica do Público.

A sensação de irrealidade

João Gonçalves 21 Jan 13



«De Portugal, que lhe direi? A decadência do país, por falta de braços e dinheiro, é manifesta. Lisboa suja, as estradas esburacadas, um ar de decadência que, se não fosse mesquinho e acabrunhador, seria saudável, por o país perder aquele ar lavado e penteado por decreto, que o tornava arrebicado e ridículo. Apesar de as possibilidades de informação serem hoje muito maiores e atingirem maior número, a sensação de irrealidade persiste.»

 

Carta de Jorge de Sena a Sarmento Pimentel (8.5.1969)

Grandeza

João Gonçalves 16 Set 12

O furacão e as "pulgas lusitanas"

João Gonçalves 20 Ago 12

Isto é tão bom que até o furacão Gordon passou ao lado dos Açores, apenas manifestando-se com uns ventos, umas chuvas e umas ondulações mais ou menos exaltadas que afectaram sobretudo o arvoredo. Ah, o "país doce" que é Portugal e que assusta furacões que afinal  fogem do

 

(...)

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço.
És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.

 

Jorge de Sena

Quem muito viu

João Gonçalves 15 Mai 12

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

 

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi

 

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

 

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

 

Jorge de Sena

Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) —
— tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes.
Ou sejam todos quantos pavoneiam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.

Porque não há ninguém por mais que te ame,
ou por mais que seja teu amigo (e,
com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
que te perdoe que tu não tenhas estourado,
no momento em que se soube que estouravas.
É uma «partida» (ou um «regresso» sem piada nenhuma)
absolutamente e aterradoramente inaceitável,
humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás, como se diz,
com língua de palmo. Se és um pobretana,
solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas
que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito
uma tontura, um como que silêncio negro,
podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante
está livre de ocupações prementes para te acudir.
Uma que outra vez apenas, para alívio
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
e quando em desespero tu reclamas.

Não contes com mais nada senão morte.
Se tens família, amando-te sem dúvida,
inteiramente delicada a ti que seja ou é,
não penses que não és constante imagem
sem desculpa alguma de andar pela casa,
um pouco vacilante, às vezes suplicando
uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te
a fazer referências tidas de mau gosto
à espada que para onde vás segue suspensa
sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém,
até contraditoriamente porque te amam,
suportam que não sejas quem tu eras,
mas só morte adiada, o que é diverso
do horror de um cancro que não se sabe
quando matará mas é criatura de respeito,
crescendo em ti como se estiveras grávido.
Assim, meu caro, com coração desfeito
sem metáfora alguma, és apenas uma
indecorosa e miserável chatice.

Portanto, irmãos humanos, se estourais,
estourai por uma vez aliviando
quem vos quer ou não quer por uma vez.

 

Jorge de Sena

A única que brilha

João Gonçalves 13 Mar 12

Eu, em matéria de energia eléctrica, prefiro a "pequenina luz bruxuleante" de Jorge de Sena. Porque é a única que verdadeiramente brilha.

 

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.



EM BREVE

João Gonçalves 19 Jan 12

Pesquisar

Pesquisar no Blog

Últimos comentários

  • João Gonçalves

    Primeiro tem de me explicar o que é isso do “desta...

  • s o s

    obviamente nao é culpa do autor ter sido escolhi...

  • Anónimo

    Estou de acordo. Há questões em que cada macaco se...

  • Felgueiras

    Fui soldado PE 2 turno de 1986, estive na recruta ...

  • Octávio dos Santos

    Então António de Araújo foi afastado do Expresso p...

Os livros

Sobre o autor

foto do autor