
Antes de me deitar, varri os jornais de sexta-feira. Inevitavelmente fui parar ao suplemento "6ª", do Diário de Notícias. Sem Vargas Llosa, mesmo que atrasado, a coisa empobrece a olhos vistos. Há textos interessantes sobre os alfarrabistas de Lisboa e do Porto e é ressuscitado, em versão "ensaístico-literária", o dr. Alfredo Barroso cuja verve abarca desde o futebol até Camilo Castelo Branco, passando pelo tio. Parei no guru Mexia. A página era dedicada ao poeta-padre Tolentino Mendonça que, depois de uma obscura passagem pelo Vaticano, voltou discretamente a casa. E, pelos vistos, à poesia. Informa Mexia que este livro "contém a poesia reunida" do poeta-padre. O título é entusiasmante: "a noite abre meus olhos". E o entusiasmo de Mexia também. "O poema, diz Tolentino, é um tumulto que abala a ordem do universo, é uma glória secreta. Essa noção exaltada será uma constante na sua produção, embora não suscite nunca uma retórica cósmica e explosiva [que diabo será "uma retórica cósmica e explosiva"?], escolhendo antes um discurso de intensidades oblíquas." Pois. Depois das trapalhadas que se sucederam à morte de Manuel Hermínio Monteiro, a Assírio & Alvim perdeu-se como editora iconoclasta. Parece que o poeta-padre é agora um dos seus mentores principais e é de lá que vem este livro. Tolentino não me aquece nem me arrefece com os seus rodriguinhos evanescentes que deixam, pelos vistos, Mexia em êxtase. A ele preferirei sempre qualquer letra que vá directa ao assunto. Como esta:
"Deita-te comigo nesta cama de pedra."
Canta de novo esse convite, tantos anos passados,
de novo nas ruínas da rua do emprego
onde fiquei de te esperar.
Está deitado aqui o corpo que recorda, está deitado.
Os ornamentos de metal, a música portátil,
o tambor de uma criança na rua,
o risco amarelo da coberta.
O braço que descai debaixo do pescoço
o coração cujo ritmo decresce
os olhos em que dói a luz do candeeiro
os pés à procura da lã do cobertor
o esperma que seca sobre o peito
o sono entrecortado da respiração.
Trocas de luz errante, ervas sem nome
que me dizias serem feno grego, junça, melodia.
(J.M. Magalhães, Uma luz com um toldo vermelho, Presença, 1990)