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portugal dos pequeninos

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"Moderador e árbitro"

João Gonçalves 9 Mar 13



O prefácio do Presidente da República ao novo volume de Roteiros dá capa aos jornais e peças nas televisões. Cada qual albardou o exercício a seu gosto, como é aliás costume, pelo que não vale a pena perder tempo com inutilidades hermenêuticas. Cavaco não precisa de exercícios frívolos de interpretação. Ou por serem novinhos, ou por serem simplesmente parvos, muitos dos actuais parasitas epistemológicos do desempenho presidencial esquecem ou ignoram que, em 1982, os drs. Mário Soares e Francisco Balsemão, respectivamente líderes do PS e do PSD, decidiram uma revisão constitucional que, entre outras coisas, porventura meritórias, retirou ao PR a tutela política sobre o governo. Na sua versão incial, a Constituição previa a chamada dupla dependência política do Executivo, a saber, perante o Parlamento e perante o Presidente. Eanes, no uso dessa competência, removeu Soares em 1978 e entregou o comando do governo sucessivamente a três independentes. Com a AD em maioria na Assembleia, Soares "serviu-se" de Balsemão para assegurar que os chefes do governo, daí em diante, não mais pudessem ser demitidos ou escolhidos pelo Chefe de Estado. Ironicamente, após ter regressado ao poder com o Bloco Central de 1983-1985, Soares foi o primeiro a "provar" o fel da Constituição revista em virtude da implosão do governo a que presidia. Como Balsemão antes dele, em 1982 (Eanes recusaria dar posse ao chamado "governo Vítor Crespo" proposto pelo então chefe do PSD já em queda livre interna). Para "chegar" ao governo, o PR passou a só poder dissolver o Parlamento e a convocar eleições, o que mudou a forma e o método das intervenções presidenciais. Não foi por acaso que Soares, o Presidente, num livrinho de entrevistas, apelidou a função como a de "moderador e árbitro" e insistiu na tecla da "magistratura de influência". Com a aceleração da vida política nacional a partir da demissão de Guterres, em Dezembro de 2001, o Presidente, na circunstância Sampaio, só uma vez (e por escassos meses) deu posse a um primeiro-ministro que não foi a votos, Santana Lopes, numa espécie de abraço do urso que seria fatal à maioria da época. Foram os resultados das eleições legislativas, por um lado, as contingências partidárias ou a vontade do líder do governo, por outro, que ditaram a sorte dos Executivos. É evidente que o "poder da palavra" dos presidentes conta. Não imagino que Cavaco gaste 20 páginas para nada, que não pondere meticulosamente o que diz com louvável parcimónia ou que não actue com a discrição e a eficácia necessárias (ainda na passada terça-feira recebeu o ministro da economia e emprego com quem discutiu a estratégia de fomento industrial e onde convergiram numa matéria cara a ambos, a concertação social, na qual Cavaco foi, enquanto 1º ministro, como que um percursor). Alguns dos sobreviventes dos idos de oitenta que hoje criticam Cavaco, e o acusam de "passividade", são os mesmos que aplaudiram entusiasticamente a restrição da liderança institucional do PR através da Constituição. Quiseram um "moderador e árbitro", um "magistrado de influência". É isso, muito adequadamente, que têm.

1 comentário

De Carlos Vargas a 11.03.2013 às 02:19

DA PASTORÍCIA PROTESTANTE -

Muito oportunamente, João Gonçalves, recuperou a memória descritiva de um dos actos políticos mais marcantes - e com maiores consequências efectivas - da vida democrática portuguesa: a revisão constitucional de 1983 e a alteração ad hominem " para subtrair poderes ao então presidente Ramalho Eanes. Essa operação, patrocinada pelo PS, PSD e CDS, teve como objectivo dispensar o governo de responder politicamente perante o presidente da República. Desde então, o executivo passou a responder apenas perante a A.R . A revisão constitucional de há 30 anos transformou o presidente da República num híbrido de "magistrado de Influência" e "árbitro". O que parece querer dizer muito e, de facto, quer dizer nada. Ou seja, o Presidente passou a ter poderes equivalentes ao de um líder espiritual. Bem pode o Chefe de Estado pastorear as alminhas, consolá-las, encher os jornais de propostas, de recomendações, e até de críticas. Nada do que possa dizer ou sugerir tem consequências reais. Qualquer governo é livre agora de seguir apenas as suas próprias opiniões porque adquiriu, em 1983, pela mão zelosa do PS, PSD E CDS, o direito constitucional de ignorar toda e qualquer opinião do presidente da República. Desde há 30 anos, portanto, que o regime de castração de poderes do Presidente, implantado em 1983, tem sido aceite por todos os partidos em modo de felicidade democrática geral. É por isso extremamente curioso verificar a coerência de certas vozes responsáveis pelo putsch " jurídico de 1983, que se mostram agora indignadas perante os alegados silêncios presidenciais de Cavaco Silva. Haverá decerto momentos políticos, como o atual , em que o próprio Presidente duvidará legitimamente da bondade da pastorícia protestante. E tendo visto o que vi, nos últimos 30 anos, posso dizer que o compreendo perfeitamente.

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