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Cunhal: "honra e vergonha"

João Gonçalves 13 Jun 15

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Dez anos após a sua morte, Álvaro Cunhal é recordado numa entrevista ao Diário de Notícias pelo seu melhor biógrafo político, José Pacheco Pereira. Estão publicados três de quatro volumes desse tão monumental quanto preciso trabalho que culminará, naquele por vir, com a saída de cena de Salazar em 1968. Tem talvez razão o autor quando afirma "perceber" Cunhal, a função específica do historiador. Isto é, não se perceberá Cunhal ou as suas tensões e circunstâncias políticas sem ler, ou reler, com gosto igualmente literário, os livros de Pacheco Pereira. Porquê? Socorro-me da apenas da entrevista. «Era uma personalidade psicologicamente muito complexa. Muitas vezes isso só se revela mais tarde e retrospectivamente percebemos que a persona era a mesma. Cunhal foi transformado numa personalidade a preto e branco, um monge laico do comunismo, que obviamente não era. Uma espécie de teórico absoluto, ortodoxo, inteiramente ligado aos soviéticos, e em vários momentos decisivos ele não foi isso. Mesmo quando muda de posição, como no caso da Checoslováquia, muda por razões geopolíticas: está convencido de que mais importante do que o sucesso da experiência checa, que ele vê com bons olhos, é que a União Soviética não perca o hegemonia no movimento comunista internacional (...). Cunhal nunca abandonou a ideia de que o derrube do regime se faria também através de uma componente de luta armada, que é a tese dominante do Rumo à Vitória, onde fala no levantamento nacional armado. A fórmula é ambígua mas implica uma forma de violência revolucionária (...). Uma biografia de Cunhal é complexa, porque tem de tratar não só evoluções mas também pensamentos (...) O PCP tem uma história política ideológica muito marcada pelas ideias dele. Uma vez chamei-lhe o idealista pragmático, ou o revolucionário pragmático. Manteve sempre uma postura revolucionária, no sentido leninista, nunca abandonou a necessidade da violência, da luta armada, nunca defendeu que a transição em Portugal pudesse ser pacífica (...) Ele deixou ficar inscrito no programa do PCP uma coisa que lhe garantiu a sobrevivência: mais vale ser o que era do que tentar mudar (...). De todas as pessoas públicas que conheço, Cunhal é das mais vaidosas que é possível imaginar. É uma vaidade muito especial, não é dizer “eu sou o melhor”, mas traduz-se na representação que ele faz de si próprio na ficção. São Bernardo fala na vaidade do monge que é perfeito, que escolhe sempre os trabalhos mais difíceis, comporta-se sempre de forma exemplar. E as personagens em que Cunhal se representa na ficção são perfeitas, mesmo nas suas imperfeições (...). É um homem que se descreve a si próprio como a encarnação viva de um ideal que lhe apaga a personalidade, que lhe tira a pulsão pelos defeitos, que lhe apaga os pecados, sem os negar. Cunhal tem um grande corpus de textos – como aliás têm outras pessoas no PC – sobre os defeitos. O entendimento da clandestinidade do PC não é idealizado. Sabe que estão a lidar com homens com defeitos em situações de grande risco. Essa combinação do defeito com o risco e as fragilidades na experiência clandestina Cunhal percebe-a muito bem. Daí que nunca apele à ortodoxia nem à ideologia nem a uma espécie de situação abstracta. Ele usa aliás os valores do mundo mediterrânico: a honra e a vergonha (...). As ambiguidades são interessantes, quem trabalha sobre esta matéria tem sempre de perceber o que não é dito (...). Cunhal é uma das duas ou três figuras que explicam o século XX português, como o Salazar. Há outras pessoas muito importantes para se perceber o século XX. O Afonso Costa, que explica o republicanismo. O Marcello Caetano, o Mário Soares, várias figuras. O Cunhal é sem dúvida uma delas. Muitas coisas que marcam o século XX, ainda hoje vivas, têm a ver com o pensamento dele. Por exemplo, a ideia de que Portugal não é um país pobre (...) Eu percebia-o bem de mais e ele percebia-me bem de mais.»

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