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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

Esse sorriso das letras

João Gonçalves 7 Mar 14

 

Ontem almocei na Bénard com o meu amigo Joaquim Manuel Magalhães. Vai para trinta anos que, a pretexto de um livro dele, nos encontrámos pela primeira vez na ardida Ferrari da Rua Nova do Almada, agora com uma lateral direita de quem desce reservada a trapos e bancos. Falámos de livros, da poesia (esse sorriso das letras no dizer de Pessoa), de mortos, de grandes mortos, e de pequenos mortos-vivos à mesa e enquanto descíamos até ao metro que ele apanhou para ir ver uma exposição de Rui Chafes. O resto, a "vida" que jaz fora da nossa conversa, pode ser denotada através destes versos de Jorge de Sena (que também "compareceu") retirados a esse breviário da chamada literatura portuguesa e afins intitulado Dedicácias.

 

É triste e é cómico, mas é preciso dizer-se:
quem mais recusa e nega é quem mais aceita,
e não aceita mais aquele que menos recusa.
Porque de infindo amor nos recusamos
a que ele seja esse infamar-se o ser
que as coisas e os humanos nunca são inteiras.
A conivência torpe com a humanidade,
no que ela tem de vil, de ignóbil, de mesquinho,
a conivência com este espectáculo hediondo
de um mundo de traição, perfídia, malignidade reles,
e sobretudo a estupidez triunfante, não é possível.
Seja qual fôr a causa, a nobre causa, a santa causa,
não é possível: nada que seja nobre,
nada que seja santo, pode resistir
a tão porcas vizinhanças. Mas,
se recusarmos essas complacências,
chamam-nos traidores aqueles que a traição cega
na fúria de que as causas justificam os fins.
Antes trair tudo isso. Se uma coisa, um homem, uma pátria,
precisam da mentira e do contágio sujo
para salvar-se - que há que salvar neles?
Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os mandasse.
Cada qual que mande nos fiéis da sua igreja;
e que eles sejam obedientemente fiéis.
Mas que se não diga que não pertence ao mundo
quem, porque lhe pertence, não aceita ordens
das sociedades de socorros mútuos
a que não pertence. Traição é isso de fingir-se alguém
o guardião só de uma verdade. As verdades
são prostitutas notórias que depravam
os seus guardiões. E, contra essas verdades tão ricas,
e tão poderosas de seus fiéis, só temos
esta dignidade que nos querem tirar -
talvez porque seja mesmo o de que sentem falta.

O "pastel"

João Gonçalves 7 Mar 14

 

«Para explicar o que foi o “consenso” em Portugal, talvez seja melhor começar pela Carta Constitucional de 1826, “outorgada” por D. Pedro IV. A Carta pretendia reconciliar o radicalismo “vintista” com o antigo regime, e a alta nobreza tradicional com a classe média e a plebe das cidades. Não se dizia “consenso” nessa altura, mas mais gramaticalmente “compromisso” e, em certos casos, “fusão”. O compromisso de 1826 provocou uma guerra civil que durou com intermitências para lá de 1834 e definiu uma regra básica: não podia haver entendimento de espécie alguma entre a esquerda e a direita, com o Estado em bancarrota e fome no país. Por isso, mesmo depois da vitória e a perseguição aos miguelistas, não houve paz que durasse entre campeões da liberdade. Com outros protagonistas, o ódio fervia como na véspera. Em 1836, o radicalismo do Exército e da plebe de Lisboa resolveram abolir a Carta e combinaram com a rainha (que resistiu) pôr simultaneamente em vigor a Carta e a Constituição de 1822. Portugal, num exemplo de “fusão” a que toda a gente chamava o “pastel”, ficou com duas Constituições, enquanto se preparava a terceira para as substituir. Essa terceira devia ser “o mais parecida possível” com a Carta, para contentar os “revolucionários” de Setembro e o partido com quem eles tinham alacremente corrido. Em 1838, estava pronta e tomou o nome solene de “Ordem”. Não existiria desordem porque, em princípio, o acordo era universal. Só que não era e a “Ordem” deslizou suavemente para a direita e acabou a restaurar a velha Carta (de 1826 e 1834) em 1842. Costa Cabral,  o dono da nova situação, imaginou então fabricar um compromisso pela força, o juste milieu. Aguentou com dificuldade quatro anos e caiu com uma guerra civil, a da “Patuleia”. O Estado devia ao mundo inteiro e a fome continuava. Em 1851, Saldanha, apoiado por uma intervenção prévia da Espanha e da Inglaterra, estabeleceu a concórdia universal e Fontes Pereira de Melo sustentou essa concórdia com dinheiro da Inglaterra e da França. Veio logo a época dourada da “Regeneração”, com um pequeno intervalo (cinco anos) em que a diminuição em quantidade e valor das remessas do Brasil levou os partidos que andavam em litígio fingido a uma verdadeira “fusão”, em que partilharam irmãmente Portugal. A fome não apertava tanto e o Estado parecia solvente. Em 1890-1893, a ilusão morreu. Dali em diante, como entre 1817 e 1851, uma guerra civil larvar ou activa não deixou os portugueses. Salazar, com a censura, o Exército e a polícia política, abafou essas longas festividades. Hoje, o Governo que fala em “consenso” e o PS que o recusa por razões triviais não percebem que o “consenso” implica um Estado com dinheiro, e muito dinheiro, e crescimento económico. Não sabem história.»

 

Vasco Pulido Valente, Público

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