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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

AS GUIAS DE PORTUGAL

João Gonçalves 3 Dez 06


De acordo com este estudo, estamos a preparar um futuro radiante de trambolhos. Escapam as meninas que, ao contrário dos rapazes, se aplicam. As nossas moças estão a enterrar, metodicamente e pela segunda vez, a Beauvoir e respectivas sequelas "feministas" nacionais. Ser "feminista" perante um cenário destes é tão anacrónico como um adolescente não ter um carro que o leve ao liceu e à universidade onde ficam, pelos vistos, a pastar. Eles só conduzem. Elas guiam.

A SOMBRA FASCINANTE

João Gonçalves 3 Dez 06


Tenho lido umas coisinhas sobre a viagem do Papa à Turquia. Com ele regressado ao Vaticano, continuo a pensar o mesmo: a Turquia, tal como está (e não parece que possa "estar" outra coisa), não cabe na União Europeia. A menos que a UE pretenda ser um daqueles paranóicos dos filmes de James Bond que sonham com a uniformização desde aqui, da Terra, até ao último céu. E sobre o magistério de Ratzinger e o da Igreja, em geral, melhor do que as minhas, as palavras do agnóstico Gore Vidal reflectem o essencial: "although an absolute nonbeliever I saw the church as a fascinating shadow of imperial Rome with its curia so like the Roman Senate whose building is still pretty much intact in the Forum."

O LOCAL DO CRIME

João Gonçalves 3 Dez 06


É fantástico, mas consigo vir de Paris mais reaccionário do que o habitual apesar de tantas "Luzes". O democrático turismo de massas deu cabo de tudo. E a literatura aeroportuária também. Bastou o sucesso do "Código" do sr. Dan Brown para o Louvre - já infrequentável a não ser de madrugada - se tornar num "lugar de culto" dos tempos actuais, e não pelas melhores razões. O pequeno quadro de Leonardo não merece tanta agitação bárbara e as belas e silenciosas salas das Tulherias ainda menos. Não há hoje nenhum basbaque que não passeie a sua inutilidade democrática pelos corredores de um Louvre, de um MoMa ou dos Uffizzi. Saem de lá exactamente como entraram. No primeiro caso, só para contar que estiveram no local do crime.

LE PALACE

João Gonçalves 3 Dez 06


Há um outro morto célebre de Paris a que não resisto fazer uma breve referência: Roland Barthes. Ou melhor, dois, sendo o outro um local. É evidente que o Barthes da semiótica nunca me interessou para nada. Se dúvidas tivesse, bastava-me ter lido o prefácio de Eduardo Prado Coelho, de 1974, a "O prazer do texto" (e "O prazer do texto") para acabar com elas. Existe, porém, um outro Barthes - o das "Mitologias", de "A câmara clara", da "Lição", dos "Fragmentos de um discurso amoroso" e de "Incidentes", tudo traduzido e, em geral, bem - que já me "diz" qualquer coisa. Barthes era um homem estranho e solitário, "preso" à figura maternal (isso é muito evidente em La chambre claire, escrito depois da morte da mãe) de tal maneira que, após um atropelamento na Rive Gauche a seguir a um almoço com François Mitterrand, a sua saúde se complicou de tal forma que, por assim dizer, se deixou morrer. "Incidentes" é um livro que aparece por aí naqueles estafados "mercados de livros" - sempre os mesmos - ao preço da uva mijona (Quetzal Editores). Vale a pena. É póstumo e consiste em alguns artigos escritos para revistas e jornais e em pedaços de um "diário" não formal do autor. Teve na altura o "picante", hoje em dia de uma vulgaridade atroz, de surpreender Barthes na sua intimidade algo infeliz e na sua sexualidade medíocre, virada inteiramente para a "realização instantânea" com rapazes ora pagos, ora deslumbrados pelo professor, e não pelo homem que rapidamente abandonavam. Ou nem isso sequer: "perguntei-me se realmente eu teria feito mal (toda a gente se espantaria: dar dinheiro a um gigolo, antes!) e disse para comigo que, visto que no fundo também não tinha assim tanta vontade de dormir com ele (nem com mais ninguém), o resultado era o mesmo: deitando-me ou não, às oito da noite estaria no mesmo ponto da minha vida; e, como o simples contacto dos olhos, da palavra, me erotiza, foi esse o gozo que eu paguei". Mas adiante. Está no livrinho um artigo escrito para a Vogue-Hommes, em Maio de 1978 (e assim chego ao local), sobre Le Palace. Le Palace era um teatro que foi transformado em "discoteca" e que fez um furor inaudito nas noites parisienses. Situava-se em frente ao restaurante Le Chartier - de onde não saio porque é daquelas casas de Paris onde o anonimato colectivo, o "ambiente", a beleza do estabelecimento, um bom queijo e melhor "rouge" superam a banalidade da comida - e, nos anos do fim, tornou-se estupidamente numa referência "gay" em que as tardes de domingo permitiam aos do Barreiro e da Massamá locais divertirem-se. Estive lá por duas vezes, nos anos noventa, apenas para tentar imaginar o que tinha lido com Barthes e para poder admirar a beleza decadente do espaço. A foto acima, tirada há três dias, ilustra o Palace actual: uma porta fechada para sempre com grafitti da "época" a condizer. "Proust teria gostado? Não sei: já não há duquesas. No entanto, debruçando-me lá do cimo sobre a plateia do Palace agitada por raios coloridos e silhuetas que dançam, adivinhando à minha volta na sombra das bancadas e dos camarotes descobertos todo um vai-vem de corpos jovens ocupados em não sei que circuitos, parecia-me reencontrar, numa transposição moderna, algo que tinha lido em Proust: aquela soirée na Ópera, em que as salas e as frisas formam, sob o olhar apaixonado do jovem Narrador, um meio aquático, docemente iluminado por plumas, olhares, pedrarias, rostos, gestos esboçados como por divindades marinhas, no meio das quais reinava a duquesa de Guermantes. Nada mais que uma metáfora, em suma, vinda de longe na minha memória para embelezar o Palace com um derradeiro encanto: o que nos advém das ficções da cultura".

ANIMAIS MORIBUNDOS

João Gonçalves 3 Dez 06


Não obstante não tugirem nem mugirem sobre o "líder máximo" cubano - um ícone "revolucionário" que Gabriel Garcia Marquez, na sua eterna inconsequência política, espera que atinja "cem anos de ditadura" - que dá chama a um regime fascisto-"intelectual", mesmo na sua condição de animal moribundo, esperam-se por aí graves indignações retroactivas se, por acaso, desta vez Pinochet morrer. Entre mortos, feridos e desaparecidos, Pinochet permitiu que o Chile fosse o que é hoje numa depauperada América Latina. Quando largou tudo, berrou às tropas: "missão cumprida". Tinha razão.

Adenda: O Tomás, em breves linhas, explica que a democracia é congénita da história política do Chile, apenas interrompida pelos "anos Pinochet". Pelos "anos Pinochet" e pelo desvario do voluntarista Allende que inspirou a "fase bigode" de António Guterres, acrescento eu. Uma coisa sucede à outra. Falo apenas de crescimento económico e não do regime. E quanto à "missão cumprida", não se leia o que lá não está, um elogio ao ditador. Para ele, sim, é um auto-elogio. Tinha efectivamente cumprido o que a si mesmo se propusera.

CONTOS DA LOUCURA NORMAL

João Gonçalves 3 Dez 06


Três notas a propósito de jornais lidos num avião. Um jovem cubano, estudante de sociologia, ouvido numa rua de Havana no dia das comemorações dos oitenta anos do "líder máximo", lembrou que na antiga Roma se costumava distrair o povo com festas e festanças enquanto o imperador agonizava. Na Coreia do Norte, Kim Jong Il, segundo fontes oficiais, é tão "querido líder" que, graças à sua preclara direcção, o país não regista um (1) único caso de Sida. Em Barcelona, um médico de apelido Martin, perpetra abortos como quem enrolha garrafas, numa clínica onde acorre de tudo, desde aflitas a mentirosas. Uma jornalista nórdica foi até lá "disfarçada" de grávida de oito meses e o referido médico e a sua esplendorosa clínica privada estavam dispostos ao cometimento a troco de umas boas centenas de euros. Pelos vistos, e apesar das desconfianças deste "dr. Jeckyl and mr. Hyde" catalão, o seu negócio desfaz qualquer gestação independentemente da passagem do tempo. Espanha é como cá, nas causas de exclusão de ilicitude, variando nas semanas consoante o "motivo": 12 ou até 23, quando se alega a "saúde psíquica" da parturiente. Esta última, como se constata facilmente, serve para tudo e cabe lá quase tudo. Até meros casos de polícia como o deste Martin espertalhão e das senhoras que não hesitam em se verem livres de fetos perfeitos como se fossem furúnculos para a frente.

FLANAR ENTRE MORTOS E VIVOS

João Gonçalves 3 Dez 06


1. Tentar andar, sim, andar meramente pelas ruas de uma grande cidade - aquilo a que nós chamamos prosaicamente de "flanar" - em dias que precedem o horrível natal (o natal do consumo, da hipocrisia e da frivolidade e não a lembrança permanente do nascimento de Cristo), é uma tarefa medonha. Restam as ruas mais despojadas, os locais que não vêm nos mapas e os cemitérios.
2. Como Cioran, sou dado a cemitérios. O convívio com os mortos (na hora da morte o mais célebre morto não deixa, por isso, de ser apenas isso, um morto) ajuda-nos a suportar com mais indulgência os vivos e a desculpá-los por não perceberem onde vão acabar. Os muros que separam os cemitérios Père Lachaise e de Montparnasse da rua têm um enorme simbolismo. É, não resisto à vulgaridade, todo um programa. Num certo sentido, Paris deixou de estar viva há muito tempo apesar da sua agitação. Nos quiosques, um "hors serie" sobre os anos cinquenta parisienses esgotou. Jean Seberg - quem é que hoje sabe quem foi Jean Seberg? - esteve morta num beco qualquer sem saída, dentro de um carro, durante uns dias, vítima de um excesso de barbitúricos e de si mesma. Antes de se matar, já Seberg era uma ruína da mulher belíssima que foi. Quase a seguir, o ex-marido e seu grande amigo, Romain Gary, depois de um jantar bem disposto com o editor Claude Gallimard, foi para casa e deu um tiro na cabeça. Os rostos bonitos, frescos, autoctónes ou importados que se cruzam connosco pertencem já a outra coisa e eu, definitivamente, não pertenço a essa coisa.
3. Isto talvez venha a propósito de ter acabado de ler a derradeira "memoir" de Gore Vidal. Estava, explica ele, para lhe ter dado outro título, algo como "entre obituários". Está a milhas de Palimpsest mas é seguramente uma obra que vale pelo capítulo anti-piegas e cruel dedicado à morte de Howard Austen, o companheiro de cinquenta e três longos anos um pouco por todo o mundo, Paris incluída. Só ao fim desse mais de meio século, conta Vidal, um pouco antes de Howard se submeter a uma inútil operação, lhe pediu que o beijasse. Nunca houve sexo - cada um pedalava a sua bicicleta - porém houve o que raramente há nestas coisas: amizade, companheirismo e cumplicidade. Julguei que já ia encontrar Susan Sontag em Montparnasse onde ela desejou repousar. Folheei-a através doutro livro cruel e belíssimo de Annie Leibovitz que, entre muitas outras coisas, "conta" uma simples história de amor entre dois seres humanos até à morte de um deles. Sontag amortalhada num vestido verde é uma sequência fotográfica extraordinária e corajosa.
4. Chega de mortos. Falemos antes dos que vão morrer. Qualquer bistrot de Paris é, ainda, um dos poucos paraísos para fumadores. Não é o meu caso e, não sendo fundamentalista anti-tabaco, detesto sair a cheirar a cinzeiro. Todavia o cheirar a cinzeiro faz parte do gozo de Paris. No dia em que a patrulha saudável ocupar definitivamente o terreno, Paris, uma certa ideia de Paris, morre. E nós inevitavelmente com ela.

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