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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

GENET MALDITO

João Gonçalves 15 Abr 06

O Jorge Ferreira tem no seu blogue uma rubrica diária intitulada "Ao longo dos tempos". Aí leio que passam vinte anos sobre a morte do escritor francês Jean Genet. Genet "apareceu" morto num hotel de Paris, provavelmente um hotel perto de uma estação de metro ou de comboio. Genet dizia que escolhia propositadamente os hotéis perto de estações para, sendo caso disso, desaparecer mais rapidamente sem ter de pagar a conta. Nessa altura já tinha dinheiro que bastasse, embora fizesse questão de andar só com uma pequena mala ou saco com o indispensável. O autor de "Diário de um ladrão" teve uma vida complicada que os seus livros - muitos autobiográficos - retratam cruelmente. Genet não se poupou no "realismo" das suas metáforas literárias e acabou produzindo das mais poderosas páginas da literatura francesa do século XX. Apesar de "maldito", marginal e "escandaloso", foi publicado pela prestigiada Gallimard/NRF, tendo Jean-Paul Sartre "apadrinhado" a edição das suas obras completas com o monumental e famoso "prefácio", "Saint Genet, Comédien et Martyr". Li pela primeira vez Jean Genet na adolescência. "Pompes Funébres", recordo-me, foi recebido como um murro no estômago, bem longe dos mais "pacíficos" "Diário", já citado, ou "Querelle de Brest". Ainda hoje permanece para mim como uma obra fundamental para o conhecimento de Genet. Nos anos setenta, dedicou-se a causas que parvamente se chamam agora de "fracturantes", nos EUA, em França e noutros sítios, como os "Panteras Negras" ou a "causa palestiniana". No segundo volume das memórias do escritor espanhol Juan Goytisolo ("En los reinos de Taifa") há umas quantas páginas dedicadas a Jean Genet que vale a pena ler, bem como a biografia de Edmund White ("Genet, a biography"), porventura das poucas coisas com jeito que este escreveu. Ao contrário de Rimbaud, Genet, par delicatesse, não "perdeu a sua vida" . Desceu e sujeitou a todos os infernos o que bem entendeu. Quis ser enterrado em Marrocos, terra do seu companheiro dos últimos tempos, mais exactamente no cemitério de Larache, perto de Tânger. Virado para o mar.

RARAS

João Gonçalves 15 Abr 06


Não sei bem porquê, martela-me na cabeça a frase com que Baruch Spinoza termina a sua "Ética": "todas as coisas dignas de atenção são tão difíceis quanto raras". As pessoas também.

O PODER DOS ARGUMENTOS

João Gonçalves 15 Abr 06

Nos cem anos do nascimento de Beckett, já aqui recordados, vem a propósito contar uma curiosa história da sua biografia, que uma revista literária francesa de grande divulgação publicou aí pelos idos de 90. Ei-la.
Em 1978, vivendo Ruhollah Khomeini no seu exílio francês, o futuro senhor todo-poderoso do Irão mandou certo dia um dos seus emissários ao encontro de Beckett. O motivo da visita era o de indagar junto do dramaturgo se ele estaria na disposição de receber o teocrata, precisado este que andava de alguém com prestígio que se dispusesse a aperfeiçoar os seus conhecimentos em língua e cultura inglesas. Beckett respondeu que iria pensar no assunto, mas foi adiantando que não dispunha de muito tempo para dar lições, e além disso nem sequer sabia que preço cobrar. O emissário, ouviu atentamente, e respondeu que isso não constituía problema, pois pagava-se o que fosse necessário. E ficou-se por ali.
Poucos dias depois, outro emissário voltou a avistar-se com Beckett, mas dessa vez fazendo-se acompanhar de um lacaio, transportando uma embalagem de tamanho razoável. Perguntado se já decidira se aceitava ou não, Beckett respondeu evasivamente. O emissário, sem mostrar qualquer impaciência, ordenou então ao lacaio que pusesse a dita embalagem em cima de uma mesa, após o que a desembrulhou, deixando entrever várias latas de caviar da marca Beluga. Feito um curto mas eloquente silêncio, o emissário rogou a Beckett que não interpretasse mal aquele simples gesto de cortesia, uma vez que era sabido quanto ele apreciava caviar iraniano, e em particular o daquela marca, podendo, caso assim preferisse, cobrar os seus honorários antes em espécie do que em dinheiro.
Beckett, enfim persuadido, lá se decidiu a aceitar o aluno, mas só na condição de ele se comprometer a aceitar os seus métodos. Aceite a condição, e acertado o que havia a acertar, deu-se então início às tão almejadas lições. Parece que Ruhollah Khomeini possuía conhecimentos de língua inglesa acima da média, o que fez com que, logo ao fim de três meses, o seu explicador achasse por bem introduzi-lo na prosa de Joyce. A ideia não foi nada bem acolhida, porque, ao invés de Balzac e de Zola, de cujas obras constava ser fino conhecedor, Khomeini não apreciava minimamente o autor do Ulisses. E as aulas ficaram por ali.
Não se pense porém que este incidente provocou qualquer corte de relações entre os dois homens. Bem pelo contrário. Como os compromissos são feitos para respeitar, e Beckett não era qualquer um, enquanto viveu em França, em Neauphle-le-Château, donde só sairia no ano seguinte para ir ocupar a cadeira do poder em Teerão, o aluno nunca se esqueceu do professor, fazendo-lhe chegar todos os meses às mãos, e sempre por um credenciado emissário, tão delicada pitança.

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