Mal dormido da infeliz passeata chinesa, o eng.º Sócrates mergulhou de imediato numa sessão intimista do seu partido dedicada ao “sim”. Correram os habituais lugares-comuns sobre o aborto clandestino, a “humilhação” e a “condenação”. Nada de novo por aqui. Todavia, a parte mais interessante da peroração do secretário-geral do PS consistiu na subtil chantagem que quis deixar no ar, dirigida particularmente a criaturas que representam o seu partido no Parlamento e que estão do lado do “não”. Que disse ele? Se o “não” ganhar, a lei fica tal como está e o PS arremessará a sua maioria contra qualquer iniciativa casuística para a alterar, venha ela de onde vier. Para quem, como eu, entende que a lei em vigor é perfeitamente equilibrada - porque pondera, quer os interesses de uma vida por vir, quer os interesses e a saúde da progenitora - Sócrates chegou tarde à evidência. E, para além disso, entrou em contradição. Não foi ele que pediu “respeito” aos camaradas pelas posições internas em sentido contrário? Ou o seu absolutismo democrático só funciona quando lhe é favorável? O primeiro-ministro e o governo não ignoram que está em causa dotar o serviço nacional de saúde de condições humanas e materiais para servir as populações. Entre outras, incluem-se as medidas – até agora desprezadas pela “esquerda” e pela “direita” que alternaram no poder nos últimos vinte e tal anos – que permitam às mulheres que justificadamente recorrem à interrupção da gravidez, poder realizá-la em segurança e livres de estigmas de qualquer natureza. O resto é política e birras sem importância.
Nota: Publicado no Diário de Notícias. Entretanto, o mesmo eng.º Sócrates esteve hoje no Porto com a mesma conversa. Esta chantagem que o secretário-geral do PS anda a exercer sobre o eleitorado - ou votam "sim" ou nós não mexemos "uma palha" - é elucidativa do "estilo despotista democrático-esclarecido" do nosso primeiro-ministro. No "não" cabem muitos "sim's". Inclusivamente o "sim" à actual legislação. É a percepção que as pessoas têm disso que irrita o senhor engenheiro. É elas perceberam que se trata, não de despenalizar - diga lá ao eleitorado a verdade toda, a de que o aborto, para além das dez semanas da perguntinha, continua criminalizado com excepções - mas sim de liberalizar unilateralmente. Isso, senhor engenheiro, é que não.
Tá certo, sim senhor.
Em todo o caso os chefes partidários continuam sendo "candidatos automáticos" a PM.
Dizia eu que «não estou de acordo com, e discordo de. Assim é que é.