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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

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O Henrique Raposo escreveu um ensaio no Expresso a que deu o título de "Purgatório, um retrato de Vasco Pulido Valente". Mais. Avisa que oportunamente nos irá brindar com uma "biografia política e intelectual" do homem. Li uma parte durante a noite. Adormeci, dado o adiantado da hora apenas.E retomei de manhã. Vasco Pulido Valente (VPV) foi meu professor duas vezes. A primeira, no ano zero do curso de Direito da Católica -  de História, dois semestres, um primeiro em torno dos mistérios da "identidade nacional", e uma segunda parte sobre o século XIX português, antes da Revolução de 1820, ou seja, fundamentalmente as invasões francesas, a fuga da realeza e os ingleses - e a segunda, num único semestre do último ano do curso, numa cadeira facultativa chamada "história das relações internacionais" onde se contava a história da Europa entre as revoluções (1848) e a II Guerra Mundial (1939), baseada num livro famoso de A. J. P. Taylor.

Antes disto, já lia (e, por consequência, já sabia quem era) VPV por causa dos jornais. Por junto, são mais de quatro décadas de "convivência intelectual" que os livros ajudaram a completar. VPV, apesar de pertencer a uma "geração" da qual saíram nomes conspícuos mais ou menos para tudo, foi sempre atípico dela no sentido em que preferiu os bastidores aos palcos. Curiosamente, a única vez em que ajudou alguém a subir ao palco (Sá Carneiro), e a permanecer lá, foi contra essa geração. Em 1985, com Soares, estava nos bastidores como, aliás, tinha estado no primeiro "eanismo" (com Carlos Macedo e outros que depois se zangaram com Eanes), de 1976-1978, ou na Aula Magna, no primeiro congresso do PS, pela "social-democratização" do partido (ao lado de Cunha Rego, Alfredo Barroso e outros) contra a facção Manuel Serra, um congresso onde ironicamente Manuel Alegre teve um papel decisivo nesse processo de "endireita" do partido. 

Se chamo estes pequenos detalhes aqui, é porque não os encontrei no texto de Raposo. Por exemplo, a ligação a Eanes começou na RTP,  em 1975, quando o então major presidiu à casa em pleno PREC. Prosseguiu informalmente em Belém, como disse, onde VPV acabou por ser um "ghost writer" de alguns discursos "tomba governos Soares" dessa época. Depois, por ocasião da recandidatura de Eanes em 1980, VPV seria peça política essencial da candidatura do Gen. Soares Carneiro, da AD. Se o foi igualmente (com Barroso, de novo, António-Pedro Vasconcelos ou António Barreto) no MASP 1985-1986, desapareceria da recandidatura de Soares em 1991. Muito menos apoiou Sampaio, que fora seu amigo nos anos 60. E começou por escrever o melhor artigo sobre Cavaco em 1995 ("Chegou o Presidente"), para ir dando dar cabo dele até às eleições. Cavaco, ou melhor, o cavaquismo é muito aludido no texto de Raposo como um dos ódios de estimação "snob" do estudado. É e não é. VPV e Cavaco foram colegas de governo entre 1979 e 1980. VPV era do círculo político íntimo do 1º ministro (SE adjunto e SE da Cultura), suponho que Cavaco não. Mas Cavaco tirou amplo proveito dessa passagem pelas Finanças para tomar o PSD e o governo por dez anos. E aquando da segunda maioria, em 1991, VPV não falhou com um ou dois textos importantes onde se explicava por que é que não valia a pena mudar de Cavaco.

Numa longa litania no Observador, em Janeiro de 2017, por ocasião da morte de Soares, VPV tornou a explicar por que é que Soares era o tipo dos dois primeiros D's do programa do MFA, descolonizar, democratizar (aliás, ideia recolhida da comunicação de Medeiros Ferreira, a partir do exílio na Suiça, lida pela Maria Emília ao Congresso de Aveiro da oposição democrática, de 1968 ou 69) e Cavaco do terceiro, desenvolver. 

O "famélico de Boliqueime" é uma facécia que não chega, a meu ver, para fazer um ressentimento de classe por cima. Tal como "a cabeça de um regedor da I República" de Mário Soares. Nunca foi nem um "indefectível"  soarista, nem um "incansável snobista" desprezador de Cavaco. Pelo contrário, Raposo é que parece ter a necessidade de invocar persistentemente o "lumpen" e o "social" (ora por baixo, ora por cima), ao longo de todo o texto, para malhar VPV com a novilíngua dita libertária do que passa em Portugal por liberal, aconchegando, de caminho, alguma representação mediática circunstancial desse "libertarismo liberal", tão, mas tão académico, afinal.

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Nem sequer me parece relevante apurar se VPV é de esquerda ou de direita (Raposo jura que ele foi sempre de esquerda). O que é certo é ele ter contribuído ("the pen is mighter than the sword"), contrariamente ao que escreve Raposo, para retirar ao PS o famoso "sonho mexicano" dos anos 70 e, com o PSD, Reformadores, CDS, PPM e independentes que depois apareceram nas elites do cavaquismo, introduzir a direita pós-marcellista (um período que VPV considerou o melhor da vida dele: ele constatou as melhorias nacionais 1950-1974 ou 1851-1908, Raposo) neste regime. Há alguma lógica sincrónica (e cronológica) nisto: menos asfixia marcellista, PS social-democrata, RTP e "ambiente cultural e comunicacional" liberto do PC, liderança institucional de Eanes contra o "sonho mexicano", falhanço dessa liderança que passou para Sá Carneiro, Soares Carneiro para flexibilizar mais depressa o sistema económico, sem militares, Cavaco para "desenvolver". Balsemão ou Guterres, ou mesmo os interregnos da direita com Barroso e Lopes, não o entusiasmaram particularmente. Nunca deu corda ao autoritarismo socrático. Tentou sempre perceber Passos. Teve fraquezas por Portas, mas "ça va de soi".

É por isso um pouco leviano dizer que "VPV nunca se adaptou ao país democrático e igualitário que perfurou aquela Lisboa pequenina e oitocentista do salazarismo, acabando por se refugiar numa espécie de exílio oitocentista". Vamos por partes. Se alguma coisa o salazarismo era, era "ancien regime" e não oitocentista. Pelo contrário, a chamada monarquia constitucional, em certo sentido, foi do mais "progressivo" que ainda conseguimos ter. Depois, não é uma questão de "adaptação" a um país democrático. Na raíz, o país persiste autoritário e imaturo. Dos seus mais pequenos e insuspeitos sinais aos maiores, nos poderes institucionais e outros. É bom que haja sempre alguém que detecte e denuncie esse autoritarismo "democrático" de um regime que não há meio de tornar-se adulto. E persiste muito pouco igualitário, fora da retórica habitual, o que prejudica a denominada meritocracia logo nos acessos. Se nunca derem a oportunidade a um miúdo de Barrancos ou de Boticas a apreciar Bach, se quiser, o que é que me adianta andar com o credo do país igualitário na boca?

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 Penso que VPV sempre tentou perceber (título de um livro seu, "Tentar Perceber") o país a partir de três ou quatro "capítulos" da sua história política, económica, social e cultural do século XIX em diante. Até acredita, a avaliar por entrevistas recentes, que o país é "reformável", coisa em que eu, a não ser para efeitos meramente administrativos, deixei de acreditar há muito tempo. Ele sempre afirmou ler e reler vezes sem conta o Eça de Queiróz, ficando-lhe a falhar uma biografia. A "vulgata queirosiana", como lhe chama Raposo, é a apoteose literária da ironia, não é nem a do pessimismo nem a do cinismo filosóficos ou sociológicos. As "cenas" dos livros do Eça também servem para "tentar perceber" o país macrocéfalo, intolerante e hipócrita que continuamos a ser. Continua-se a aprender mais numa página dele, sabendo que se trata de pura literatura, do que em cem ou quinhentas que deve dar o somatório dos autores citados no último parágrafo de Raposo. Mas escapou a Raposo "o" autor de VPV para os efeitos pretendidos nesta parte do ensaio e que nem uma única vez é mencionado: Oliveira Martins. Sim, o Oliveira Martins do "Portugal Contemporâneo" que, à sua maneira, VPV foi escrevendo ao longo destas décadas. Serão ambos "homens de tempos abolidos"? Se calhar são. Todavia, abençoados sejam.

 

 

 

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