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portugal dos pequeninos

Um blog de João Gonçalves MENU

A prova de fogo

João Gonçalves 17 Mar 15

 

As mais recentes decisões judiciais relativas ao inquérito que envolve o antigo primeiro-ministro José Sócrates implicam um imenso trabalho responsável de produção e de avaliação da prova. O Ministério Público tem, por assim dizer, a sua prova de fogo, entre outros certamente, com este processo. O arquivamento do inquérito ou a dedução de acusação não deixarão indiferente o sentimento jurídico colectivo. Nem tão pouco o político. Como escreveu Miguel Sousa Tavares, não é irrelevante para ninguém saber-se se fomos governados durante seis anos por culpado pelos crimes em que está indiciado ou por inocente que, entretanto, já terá "cumprido" na prática uma espécie de pré-pena de prisão. A qualidade de vida do nosso Estado de direito democrático também passa pela perícia do "Estado acusatório". Não desejamos que ele recue. Mas não aceitamos que ele falhe.

A responsabilidade de falar

João Gonçalves 4 Fev 15

 

Numa outra ocasião escrevi que Sócrates, ao "falar", acaba por prestar um serviço ao universo daqueles que não pensam que o "dever ser" do direito processual penal se destina, a final, a produzir uma sociedade "moralmente" pura onde só haja lugar para os "honestos" definidos a partir do "apuramento" desse importante ramo do direito das liberdades. Mais. Talvez Sócrates, o antigo agente político, tenha mesmo um "dever de falar", a responsabilidade de falar. Foi legislador e executante de legislação ao contrário dos restantes cidadãos que, neste momento, estão também sujeitos a medidas de coacção. Nesta parte não comete, até porque ele inexiste, qualquer delito de opinião. Permite, aliás, que se debata o "estado da arte" do procedimento processsual penal em Portugal quando o falacioso "segredo de justiça" anda todos os dias, e em letra de forma, pelos becos da amargura. Começo a pensar que o melhor é acabar, de jure e de facto, com ele.  E acompanho João Lisboeta Araújo: «Aquilo de que me queixo não é das notícias. É do facto de serem tendenciosas e mal informadas. Normalmente com desprezo pela verdade, porque não são factuais, são opinativas. O caso justifica ser amplamente divulgado, o problema é que as notícias visam a destruição, a degradação de uma pessoa e isso aborrece-me. Muito do que foi dito é crime mas eu agora não tenho tempo de me ocupar disso. A seu tempo... Talvez seja pela minha idade, mas fui educado por um outro código, que já não vigora. Que código? O de que não se bate numa pessoa que está caída, não se goza com um preso, não se brinca com um doente, não se ri de um soldado coxo na formatura. Foi o que aprendi. Mas o que assisto é a um bacanal contra uma pessoa que está presa e não se pode defender. Está sujeito a toda a maledicência, à fantasia, a falsidades e algumas coisas verdadeiras, mas não tem possibilidade de se defender. Acha que na hierarquia do Departamento Central de Investigação e Acção Penal tem havido conivência com a violação do segredo de justiça? A violação do segredo de Justiça é um crime. Como é ao Ministério Público que compete perseguir os criminosos e eu não tenho visto grande sucesso nisso, não digo que haja um conivência, mas há, pelo menos, uma tolerância evidente. Esses factos são criminosos…»

O "sistema"

João Gonçalves 1 Fev 15

 

É pouco provável que o autor deste blogue, depois de ter divulgado a respectiva identidade, prossiga. Todavia o mais "interessante" do que escreve não será sobre outras pessoas mas sobre si próprio. Porque remete para algumas das condições em que decorre a aplicação de medidas de coacção em Portugal. Na semana passada ficámos a saber, por exemplo, que o ex-director do SEF, em prisão domiciliária, vive uma espécie de não-situação jurídico-financeira na sua relação laboral que o jargão burocrático traduz por em "faltas injustificadas". Não está de férias, não está doente, não está de licença sem vencimento, em suma, não está ao abrigo de qualquer regime de faltas porque aparentemente a lei (a nova "lei geral condensada", tipo colcha de bilros, do trabalho em funções públicas) não contempla a possibilidade de o trabalhador estar ausente do seu posto de trabalho em consequência de um processo-crime que se encontra em fase de investigação. Se o arguido for a única fonte de rendimento, seja apenas para si, seja para a família, o procedimento penal, de alguma maneira, já lhe está a aplicar uma valente "pena" antes de uma condenação efectiva ou de um arquivamento. Este inspector da PJ detido preventivamente em Évora queixa-se do mesmo: «apesar de terem retirado na totalidade o meu ordenado, sem ter sido condenado em processo disciplinar na P.J. ou ter sido condenado no âmbito do processo pelo qual me encontro preso preventivamente (sem ordenado desde Junho de 2014) conquanto a minha mulher não ter sido ainda colocada – ela é Educadora de Infância – encontrando-se desempregada, ainda que o camarada de reclusão, Eng. José Sócrates, apresente uma providência cautelar por causa de umas botas, e tem-nas agora calçadas porque daqui o estou a ver a passear no pátio, e eu que apresentei providência cautelar relativamente ao meu ordenado, ainda não obtive resposta (continuando sem ordenado desde Junho de 2014).» O "sistema" está a precisar urgentemente de ler mais Foucault e menos "direito".

 

Sócrates talvez tivesse informado Costa de que pretendia "defender-se" da forma como o fez junto da TVI. Só isso, ou o mais puro cinismo, poderá explicar a referência de Costa ao direito do primeiro à "sua verdade". O pronome possessivo é eloquente. Certo é que Sócrates efectivamente acabou por contar parte - a sua, naturalmente, aqui sem o "peso" das afirmações do secretário-geral do PS que incluíram algumas notas sobre a justiça - do que se terá, ou não, passado consigo por detrás do espelho do tribunal. O que distingue aqui Sócrates do restante universo dos detidos preventivamente é que, enquanto agente político, participava há anos no processo legislativo. Primeiro como deputado, a seguir como governante. Depois, em consequência disso e contrariamente a esse universo, ser-lhe-ia embaraçoso, para não dizer uma hipocrisia, escrever coisas do género "à justiça o que é da justiça e à política o que é da política" como se ignorasse a existência de uma "política criminal". O que Costa tem de separar pelo seu dever de ofício, Sócrates tem de juntar pelo seu dever de consciência. Ao fazê-lo (calhou ser ele) acaba por prestar um serviço ao universo daqueles que não pensam que o "dever ser" do direito processual penal se destina, a final, a produzir uma sociedade "moralmente" pura onde só haja lugar para os "honestos" definidos a partir do "apuramento" desse importante ramo do direito das liberdades. Seria uma perigosa deriva essa de colocar o direito adjectivo das liberdades fora da definição constitucional da "administração da justiça em nome do povo", interpretando-a num sentido limitativo, ou essencialmente burocrático, dos direitos, liberdades e garantias em nome da utopia dos mais "aptos", social e moralmente falando. Se os operadores optarem uma vez mais, e inflamadamente, pela burocracia e menos pelas liberdades, então teriam de andar muito para trás e chegar porventura até à longínqua manga do aeroporto de Lisboa de uma noite de Novembro. Teriam de passar a pente fino horas de televisão e metros de colunas de jornais entre essa noite e o dia de hoje. O processo, como a poesia no verso famoso de Sophia, está na rua. E não foi numa rua fria de Évora que passou agora a estar.

 

«O receio que geram estes processos em quem procura perceber e melhorar - será possível? - a qualidade (?) da nossa vida colectiva é a de os processos se arrastarem indefinidamente e  não se chegar a lado nenhum em termos de certezas e responsabilização dos principais intervenientes. O processo dos submarinos em que nenhum português tem dúvidas que houve pagamento de luvas e em que nenhum responsável se vai sentar no banco dos réus é um confrangedor exemplo desta ineficácia da nossa justiça. Mas esse não foi o caso nos processos em que são arguidos o ex-ministro Armando Vara, a ex-ministra Maria de Lourdes Rodrigues e o ex-líder parlamentar do PSD Duarte Lima em que se verificaram condenações, consideradas geralmente como pesadas, nos tribunais de primeira instância e que transmitiram à opinião pública a ideia que a justiça não está disposta a "facilitar a vida" aos políticos. Em 2015 saberemos as decisões que vierem a ser tomadas em sede dos recursos que estão a correr... Se estas decisões representam o fim da "impunidade dos poderosos" que é sentida de forma difusa mas consistente na sociedade portuguesa é algo que ainda ninguém pode saber pelo que são particularmente censuráveis as sucessivas declarações da ministra da Justiça quanto ao referido  "fim da impunidade" a propósito de investigações criminais em concreto. Não sei se será o fim da impunidade mas tais declarações são, seguramente, o fim do princípio da presunção de inocência.»

 

Francisco Teixeira da Mota, Público

O que Cavaleiro Ferreira me ensinou

João Gonçalves 21 Dez 14

 

No princípio dos anos oitenta do século passado, na Católica, o senhor da foto deu-me aulas de direito processual penal. Chamava-se Manuel Cavaleiro Ferreira e fora ministro da justiça do Doutor Salazar. Idoso, portanto, mas sábio. Era um extraordinário conversador embora por vezes não se entendesse metade da sua ironia. Era, naturalmente, um grande professor por acaso de direito. Julgo que no Brasil, onde esteve algum tempo exilado, ensinou filosofia (talvez do direito). Graças ao interesse que as suas prelecções despertavam - e a cadeira -, o processo penal acabou por ser uma das minhas melhores notas num curso de que não gostava e onde me limitava a cumprir os mínimos. Cavaleiro Ferreira era um crítico acerrimo de uma coisa (que ele tinha por inconstitucional) chamada "inquérito preliminar", criado, salvo erro, em 1975 antes da entrada em vigor desta Constituição. Recordo-me perfeitamente da defesa cerrada que fazia da figura do juiz de instrução criminal enquanto "juiz das liberdades" no sentido aqui apontado pelo advogado João Lisboeta Araújo. Passaram estes anos todos e, em alguns aspectos, parece que o direito processual penal retrocedeu cultural e constitucionalmente. É evidente que isso prejudica tanto o "John Doe" como o arguido mais conspícuo. E enquanto o "John Doe", o mais das vezes, não pode ou não sabe "reagir" ao "jogo de sombras" do processo até dada fase, os autos conspícuos permitem trazer alguma luz aos procedimentos. João Lisboeta Araújo está, pois, certo quando afirma «que um juiz que devia ser o juiz das liberdades entenda como aceitável que a par do acesso irrestrito dos pasquins à investigação a defesa não possa decentemente opor-se e contraditar porque não lhe é permitido aceder a todos os documentos e dados do processo.» Sei que defender isto não é "popular" mas nunca fui nem de senso nem de lugar-comum. Porque sempre me ocorre a rigorosa definição que Vladimir Nabokov deu dele nas suas "aulas de literatura" - o cruzamento entre um cavalo e um elefante. E porque estranhamente não esqueço o que Cavaleiro Ferreira me ensinou.

 

Durante o consulado "socrático" - no qual muitos se colocaram em bicos dos pés para ultrapassar o próprio Sócrates e "mostrar serviço" - várias vezes levantei aqui (e no livro homónimo) questões relacionadas com a liberdade de expressão. Perdi amizades que, a dada altura, decidiram ser complacentes com o absolutismo democrático que então se manifestava nos mais variados níveis. Critiquei sem temores reverenciais essas derivas absolutistas. E pugnei pela substituição democrática de Sócrates em 2009 e em 2011. Por tudo isso, e por profunda convicção, considero deplorável a decisão administrativa de impedir José Sócrates, em concreto, de conceder entrevistas. A posição do director-geral dos serviços prisionais baseou-se, segundo o seu comunicado, num parecer por ele pedido ao Tribunal Central de Instrução Criminal e ao Ministério Público. Não consta, porém, que tivesse feito "subir" a solicitação do arguido à ministra da justiça para esta se pronunciar enquanto tutela dos serviços prisionais e de reinserção social. A medida de coacção "prisão preventiva" terá subjacente alguma estatuição não escrita que, para além da privação da liberdade física do arguido, proíba a liberdade de expressão e a constitua indirectamente em potencial delito de opinião? E, mesmo que assim fosse, a justiça não teria meios para reagir se o uso dessa liberdade de expressão violasse o chamado "segredo de justiça" apesar de, no caso em apreço, ser reiteradamente violado sem punição ou vergonha? Há dias, numa sentença de 1ª instância que cominou 10 anos de prisão, foi escrito que a opinião pública não compreenderia que a pena determinada para aquele réu não fosse tão dura como a efectivamente aplicada. No dia em que o senso comum, a opinião pública e a opinião que se publica fizerem parte da previsão da norma penal e processual penal, mesmo sem lá estarem, o Estado de Direito fica em causa. Se o Estado de Direito não pode ser capturado pelos "poderosos", sejam eles o que forem, também o não pode ser pela "visão do mundo e de si próprios dos magistrados que decidem" (a expressão é de Francisco Teixeira da Mota no livro A liberdade de expressão em tribunal, FFMS, 2013). 

Separação de factos e de direito

João Gonçalves 11 Nov 14

 

Nas jornadas parlamentares da maioria, a ministra da justiça interveio e, a propósito do "caso Citius", deixou no ar (dando-se, aliás, ares de "mistério" próprio de um trailer da FOX ) a sugestão de uma alegada sabotagem do sistema. Tal perturbação, veio-se a saber depois, envolveria duas pessoas ("informáticos") da PJ em comissão de serviço na justiça. De imediato foram devolvidos à procedência e, de uma certidão do inquérito administrativo, instaurou-se outro na PGR para averiguar da perpetração de algum crime. Foi entretanto arquivado porque o Ministério Público não encontrou evidência dele. Funcionou a separação de poderes - político, administrativo e de prossecução da acção penal - tão, e bem, cara à dra. Teixeira da Cruz como ainda as suas recentes declarações sobre o "caso Timor" provaram. Os "informáticos" já tiveram a sua parte com a cessação das suas comissões de serviço. A PGR fez a sua. A ministra não tem nada a dizer?

O caminho das pedras

João Gonçalves 2 Out 14

«As circunstâncias que têm afectado no último mês o sistema de justiça vão, com certeza, adensar as dificuldades do caminho da recuperação que sentíamos nos índices de confiança [na Justiça]. A tarefa será agora mais difícil e premente. O caminho que temos de caminhar é, sabemo-lo bem, o caminho das pedras.»

Henriques Gaspar, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

O "percalço"

João Gonçalves 23 Set 14

Quando passei pelo programa da Fátima Campos Ferreira, na RTP de segunda à noite, deparei com uma pessoa com quem partilhei a única reunião a que assisti, em representação do então ministro da economia, de "coordenação" dita política do governo gerida pelo prof. Poiares Maduro e pelo Pedro Lomba. Nessa altura, a dita pessoa tinha acabado de aterrar (literalmente porque tinha vindo do outro lado do Atlântico) no ministério da justiça para ser chefe de gabinete de Paula Teixeira da Cruz depois da demissão do chefe de gabinete "original" (veio-se a saber depois que este tinha alertado atempadamente para isto a que a ministra chama agora de "percalços" no CITIUS). Entretanto, António Moura - é assim que se chama o cordial diplomata de carreira e a tal pessoa do programa da Fátima - passou a secretário de Estado da justiça e estava no auditório da Champalimaud a dar a cara pelo "percalço". E, presumivelmente, por Teixeira da Cruz. Correu-lhe muito mal. Provavelmente como me teria corrido a mim se estivesse na pele dele. Moura não merecia a provação a que o "dueto" ministra-presidente do instituto que gere o CITIUS o sujeitou. Está num lugar errado. Um "percalço" desnecessário na vida dele.

 

 

Adenda: "Não vou fazer rolar cabeças" antes do CITIUS estar em pleno, afirmou a ministra. Nem parece dela recusar-se a entender que, mais do que técnico, o problema é político. O mau gosto dos termos utilizados roça o das antigas purgas sovieto-chinesas. Mas infelizmente este governo foi-se transformando numa caricatura democrática do pior sovietismo mesmo, ou sobretudo, nos seus acessos liberalóides. E já não sai disto.

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